Narrador
O narrador garante uma contínua cumplicidade com a personagem e permite a implicação deste na narrativa:
«…que importância hão-de ter os sonhos que por trás das suas pálpebras se estão sonhando, a nós o que nos interessa é o trémulo pensamento que ainda se agita em D. Maria Ana…»
O narrador reflecte sobre o processo de escrita, desmistificando assim o seu papel:
«São comparações inventadas por quem escreve para quem andou na guerra, não as inventou Baltasar…»
O controlo da narrativa por parte do narrador é ainda verificável nos comentários valorativos ou depreciativos, nos juízos de valor e no tom moralístico que perpassa em:
. Provérbios ou profecias:
«…a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas…»
. Advertências ao leitor:
«…isto se devendo ler com muita atenção para que não escape ao entendimento.»
O tom irónico ou sarcástico permite parodiar o passado histórico e o humor põe em evidência a discordância do narrador perante os factos evocados, concedendo ao leitor o espaço de julgamento inteligente, porque confia na sua perspicácia:
«…está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé…»
O discurso do narrador é também anti-épico, quando rebaixa heróis que a História glorifica e nos apresenta como heróis gente anónima em que se incluem personagens com defeitos físicos, como Baltasar, ou homens andrajosos, como os operários da construção do Convento de Mafra:
«…termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de zambros e epilépticos, de orelhudos e parvos…»
No memorial do convento, o narrador adopta muitas posições em relação à história, o que não podemos afirmar que só existe um tipo de narrador. Em seguida estão alguns exemplos textuais e o respectivo comentário relativamente ao narrador:
Exemplo1
«São pensamentos confusos que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou tudo isto,»
Observando este excerto, verifica-se que o narrador é sem dúvida um narrador não participante – heterodiegético – e omnisciente, que conhece os pensamentos da personagem e que sabe inclusive a resposta que esta lhe daria se a interrogasse num diálogo imaginado.
Exemplo2
«Já lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer agora, sem a próxima esperança do céu, pois vamos às touradas que é bem bom divertimento»
O pronome pessoal primeira pessoa e as formas verbais «iremos» e «vamos» induzem um narrador misturado com a multidão, ou seja, um narrador que também é personagem – narrador homodiegético – e que perdendo por instantes a sua faculdade omnisciente, a mais comum em toda a narração, – vai observando objectivamente o ambiente que o cerca, transformando-se num narrador observador.